Recentemente
assistia uma reportagem na tevê sobre a morte repentina do cantor de uma banda
de rock famosa no Brasil, cuja abordagem envolvia a forma misteriosa do
acontecido, assim como também ressaltava suas músicas de sucesso, o perfil
contestador, as confusões que se envolvia e peculiaridades do gênero. A notícia
apresentava um caráter pesaroso e, apesar de enaltecer as qualidades do
artista, também enfatizava seus valores enquanto pessoa. Minha filha
adolescente, que estava por perto, comentou que se referiam a ele daquele modo
somente porque havia morrido. Concordei com ela e partilho do mesmo pensamento.
É notório a capacidade que a morte tem de nos sensibilizar e deixar comovidos
ante o fato. Nos inclinamos a reverenciar a memória dos que se foram de
forma quase poética. No mínimo há um atenuante póstumo. É cultural.
Apesar de ser fã de suas
músicas por abordar de maneira questionadora determinados valores da sociedade,
reconheço que sua imagem não era bem aceita dentro dos estereótipos impostos, e
sua fama era de roqueiro tatuado e drogado. Talvez, neste caso, tenha
corroborado ainda mais por ter sido uma morte repentina e prematura - ele tinha
pouco mais de 40 anos - o que contribui para um pesar maior, creio. Nos dias
que seguiram sua morte as músicas da banda "bombaram" direto nas
rádios. Ainda bem, gosto delas.
Todavia, o que chama atenção neste caso, como em
tantos outros que circundam alguém que morreu, é a simbologia intrínseca que
permeia a morte. Parece que, ao morrermos, somos instituídos de determinado
"poder" e revestidos por uma certa transcendência, quase uma
redenção. Existiria no morrer a absolvição dos males pelos quais somos
atravessados em vida? Tendemos a nos referir sobre as pessoas mortas como se
estas estivessem acima do bem e do mal, e, diria até que incorporam um certo
nível de sublimação. Há uma valorização "post-mortem", a qual podemos
verificar na relação de artistas célebres que em vida viveram na miséria e
depois de morrer tiveram suas obras imensamente valorizadas.
Mas que
"poder" é este? Ao tomarmos consciência da morte de alguém próximo,
somos expostos à consciência de nossa própria finitude, a possibilidade efetiva
da própria morte. Vivenciamos esta através da morte do outro e sabemos que é
bastante democrática, não se importando com idade, sexo, raça, condição
sócio-econômica, etc. De uma hora para outra sabemos que podemos deixar de
existir. Seria esse o motivo pelo qual ganhamos o caráter sublime após a morte?
Afinal, poderia ser qualquer pessoa e, um dia, certamente será. Desta forma,
concedemos e imputamos à figura de quem se foi um olhar mais suave e
respeitoso. Respeito... Talvez essa seja a palavra. Parece que quem morre passa
a um nível superior e, independente de quem tenha sido, é desrespeitoso
falar mal do falecido. Ao mencionarmos alguém que morreu, principalmente
quando engloba uma visão negativa, é comum fazermos certas referências quase
como desculpa, do tipo: "Que Deus o tenha" e outras afinidades.
Diante disso, a morte remete à concessão de quase "isenção de
julgamento". Talvez, quando nos conscientizamos da nossa própria
temporalidade na morte do outro, concedemos-lhe tal caráter de respeito e
comoção.
Em nossa sociedade
a morte ainda caracteriza-se como um tabu e não sabemos lidar ou mesmo
falar a respeito. Cada vez mais procuramos postergar a vida, tentando
"driblar" o inevitável. Com o avanço da ciência, observamos a
necessidade que temos de sua manutenção, mesmo ante a possibilidade de uma
sobrevida, apenas. Sem falar em câmara de congelamento, antioxidante, etc. Às
vezes, quando estou absorta em tais divagações, me remeto ao filme "A
morte lhe cai bem", onde as personagens estão caquéticas, despedaçadas,
mas ainda vivas!
Talvez esse seja o
motivo pelo qual nos apegamos tanto às religiões, cujo conforto se fundamenta
na possibilidade de continuação da vida após a morte. Afinal, tal premissa se
estabelece nas mais variadas vertentes, seja no cristianismo, judaísmo,
islamismo, hinduísmo, espiritismo, budismo e tantos outros "ismos"
possíveis existentes. Eu mesma confesso que fico muito confortada com tal
possibilidade.
No entanto, paradoxalmente, a
valoração da vida se estabelece e sustenta-se na própria morte. Afinal, sem essa
consciência de finitude, da temporalidade sobre a qual somos/estamos imbuídos,
protelaríamos todas as nossas atitudes e ações em uma existência prolixa. Ainda bem que podemos finalizar e concluir esse ciclo. E vamos finalizá-lo, sem dúvida. Talvez nosso grande temor em relação a morte seja justamente a dúvida se que estamos fazendo tudo que podemos e gostaríamos de fazer, e da melhor forma possível.
Na verdade, uma
não anula a outra, mas complementam-se. Morrer é uma
realidade. Viver são infinitas reais possibilidades.