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quarta-feira, 17 de abril de 2013

A redenção do morrer


     Recentemente assistia uma reportagem na tevê sobre a morte repentina do cantor de uma banda de rock famosa no Brasil, cuja abordagem envolvia a forma misteriosa do acontecido, assim como também ressaltava suas músicas de sucesso, o perfil contestador, as confusões que se envolvia e peculiaridades do gênero. A notícia apresentava um caráter pesaroso e, apesar de enaltecer as qualidades do artista, também enfatizava seus valores enquanto pessoa. Minha filha adolescente, que estava por perto, comentou que se referiam a ele daquele modo somente porque havia morrido. Concordei com ela e partilho do mesmo pensamento. É notório a capacidade que a morte tem de nos sensibilizar e deixar comovidos ante o fato. Nos inclinamos a reverenciar a memória  dos que se foram de forma quase poética. No mínimo há um atenuante póstumo. É cultural.

    Apesar de ser fã de suas músicas por abordar de maneira questionadora determinados valores da sociedade, reconheço que sua imagem não era bem aceita dentro dos estereótipos impostos, e sua fama era de roqueiro tatuado e drogado. Talvez, neste caso, tenha corroborado ainda mais por ter sido uma morte repentina e prematura - ele tinha pouco mais de 40 anos - o que contribui para um pesar maior, creio. Nos dias que seguiram sua morte as músicas da banda "bombaram" direto nas rádios. Ainda bem, gosto delas.

     Todavia, o que chama atenção neste caso, como em tantos outros que circundam alguém que morreu, é a simbologia intrínseca que permeia a morte. Parece que, ao morrermos, somos instituídos de determinado "poder" e revestidos por uma certa transcendência, quase uma redenção. Existiria no morrer a absolvição dos males pelos quais somos atravessados em vida? Tendemos a nos referir sobre as pessoas mortas como se estas estivessem acima do bem e do mal, e, diria até que incorporam um certo nível de sublimação. Há uma valorização "post-mortem", a qual podemos verificar na relação de artistas célebres que em vida viveram na miséria e depois de morrer tiveram suas obras imensamente valorizadas.

     Mas que "poder" é este? Ao tomarmos consciência da morte de alguém próximo, somos expostos à consciência de nossa própria finitude, a possibilidade efetiva da própria morte. Vivenciamos esta através da morte do outro e sabemos que é bastante democrática, não se importando com idade, sexo, raça, condição sócio-econômica, etc. De uma hora para outra sabemos que podemos deixar de existir. Seria esse o motivo pelo qual ganhamos o caráter sublime após a morte? Afinal, poderia ser qualquer pessoa e, um dia, certamente será. Desta forma, concedemos e imputamos à figura de quem se foi um olhar mais suave e respeitoso. Respeito... Talvez essa seja a palavra. Parece que quem morre passa a um nível superior e, independente de quem  tenha sido, é desrespeitoso falar mal do falecido. Ao mencionarmos alguém que morreu, principalmente quando engloba uma visão negativa, é comum fazermos certas referências quase como desculpa, do tipo: "Que Deus o tenha" e outras afinidades. Diante disso, a morte remete à concessão de quase "isenção de julgamento". Talvez, quando nos conscientizamos da nossa própria temporalidade na morte do outro, concedemos-lhe tal caráter de respeito e comoção.

      Em nossa sociedade a morte ainda caracteriza-se como um tabu e não sabemos lidar ou mesmo falar a respeito. Cada vez mais procuramos postergar a vida, tentando "driblar" o inevitável. Com o avanço da ciência, observamos a necessidade que temos de sua manutenção, mesmo ante a possibilidade de uma sobrevida, apenas. Sem falar em câmara de congelamento, antioxidante, etc. Às vezes, quando estou absorta em tais divagações, me remeto ao filme "A morte lhe cai bem", onde as personagens estão caquéticas, despedaçadas, mas ainda vivas!

     Talvez esse seja o motivo pelo qual nos apegamos tanto às religiões, cujo conforto se fundamenta na possibilidade de continuação da vida após a morte. Afinal, tal premissa se estabelece nas mais variadas vertentes, seja no cristianismo, judaísmo, islamismo, hinduísmo, espiritismo, budismo e tantos outros "ismos" possíveis existentes.  Eu mesma confesso que fico muito confortada com tal possibilidade.

     A morte representa a finalização de um ciclo de modo irredutível, somos conscientes de que não podemos voltar, simplesmente e, concomitante, tal ciclo talvez configure o bem o qual mais valorizamos, a própria vida. Não somos preparados, do nível afetivo/emocional ao cultural, para tais desprendimentos. Refletimos sobre a morte quando somos atravessados por esta vivência em nosso círculo mais próximo ou de forma mais contundente, explícita. A morte em si é um mistério e seu caráter desconhecido talvez influencie tal temor. Nunca ninguém voltou de lá para contar como é, ao menos, efetivamente. Tudo o que temos são nossas crenças pessoais e confabulações a respeito. E nos apegamos às mesmas, veementemente.           
     
     No entanto, paradoxalmente, a valoração da vida se estabelece e sustenta-se na própria morte. Afinal, sem essa consciência de finitude, da temporalidade sobre a qual somos/estamos imbuídos, protelaríamos todas as nossas atitudes e ações em uma existência prolixa. Ainda bem que podemos finalizar e concluir esse ciclo. E vamos finalizá-lo, sem dúvida. Talvez nosso grande temor em relação a morte seja justamente a dúvida se que estamos fazendo tudo que podemos e gostaríamos de fazer, e da melhor forma possível. 

     Na verdade, uma não anula a outra, mas complementam-se. Morrer é uma realidade. Viver são infinitas reais possibilidades.